segunda-feira, 21 de julho de 2008

Em julho

1. No início de julho, a Fasc decidiu incluir a população de rua no "cadastro único", o cadastro das pessoas que recebem até meio salário mínimo por mês e que podem ser beneficiadas por programas do governo federal (como o Bolsa Família e o Pro-Jovem). Para isso, finalmente deixou de exigir comprovante de residência como documento necessário. Entretanto, continuam sendo cobrados outros documentos que a maioria dessas pessoas não carrega consigo, como carteira de identidade, CPF ou título de eleitor. Assim sendo, muitos moradores de rua permanecerão excluídos de tais programas. Por vezes, parece que quem trabalha nos órgãos destinados a atender quem está na rua nunca conversou ou conviveu com eles.
2. Na mesma semana, em frente ao HPS, um morador de rua tinha uma convulsão. Mais de dez pessoas estavam paradas ao redor, tentando ajudá-lo, segurando-o, mas ninguém queria carregá-lo por medo de machucá-lo. Como estavam na frente do hospital, chamaram os médicos. Ninguém apareceu. Quando passei por ali, três pessoas já haviam entrado no hospital para pedir ajuda e ninguém fez nada. Depois de muita confusão e de várias pessoas gritando no saguão, indignadas com o descaso, os passantes resolveram levá-lo para dentro do hospital e tiveram que entrar com ele na emergência. Os médicos e enfermeiros da SAMU, ao serem xingados, responderam que não tinham bola de cristal e que ninguém os havia chamado.
Foi dos momentos mais indignantes por mim vivenciados. Incrível a falta de preocupação com um ser humano por parte de pessoas que deveriam zelar pelas vidas dos outros. O único consolo foi saber que ainda existe muita gente que se importa e que enxerga os moradores de rua.
Freqüentemente os moradores de rua são destratados pelos serviços de saúde. O Marcelo, integrante do Boca que faleceu recentemente, foi até o hospital um dia antes de sua morte e o mandaram embora.

6 comentários:

Unknown disse...

Passei por uma situação parecida esses dias.
No estacionamento ali do lado de casa. uma senhora de uns 80-90 anos de idade sentou e começou a ter convulsões e o centro lotado...todo mundo se fingindo de cego, os carros saindo tranquilamente do estacionamento como se nada tivesse ocorrendo, larguei tudo pra atender a senhora, quando meu carro finalmente chegou coloquei ela no banco de tras e voei pra santa casa que era o mais perto e dai mais burocracia até conseguir que alguém viesse com uma maca tirar ela do carro levar pra dentro do hospital...enfim...triste.
A senhora até onde fiquei sabendo está viva...ah e o dono do estacionamento me fez pagar os 10 reais antes de eu ir com a senhora pro hospital...

G.D. disse...

Quanto a exigencia dos documentos do numero '1.', nada mais me surpreende em termos de burocracia e de Brasil.

Quanto ao numero '2', creio que nao passa de um triste reflexo de como a mentalidade da maioria das pessoas se formata para fingir ao EXTREMO que certas "realidades" nao existem. "Quem sabe se pensarmos bem forte que esse cara sujo ali se torcendo todo na rua desaparecer ele nao some mesmo da nossa vista?". Magia higienista do cidadao-modelo das metropoles seculo XXI

Juriká disse...

Quanto ao tópico 1: junto com dois amigos (M.M. e N.L.F.) ouvimos diretamente de um morador de rua, o Luís Mário, como é difícil a situação de não ter esses documentos e por isso, mais uma vez, não existir. Parece-me que é fruto da mesma lógica violenta e genocida que vivemos. O mais absurdo, parece-me, é que isso é aceito como se fosse algo absolutamente normal, sem (quase) ninuém se espantar, revoltar...
Tópico 2: outro dia escrevi, depois de conversar com o amigo R.T.S. e "plagiar" sua frase, que não é porque não conseguimos enxergar as estrelas mais próximas da Lua, que elas deixam de existir, por mais que sejamos educados/inumanizados pra isso; quero dizer, não é porque não vemos (ou não queremos ver) que as coisas e suas violências não estão aí, explodindo nas nossas entranhas.

Vica disse...

Não só moradores de rua, mas pessoas de baixa renda, em geral, são desprezadas pelos serviços públicos.

Moysés Neto disse...

A representação substitui a realidade, que é negada apesar de estar diante da nossa cara.

O documento (representação) substitui a própria realidade de carne e osso que ele deveria espelhar (o outro). Assim, cria-se um teatro do absurdo que só encontra ressonância em autores lúcidos como Kafka ou Camus, prontos a serem tão realistas que parecem irreais.

Achutti disse...

Tal e qual a "seleção" que faziam na enfermagem dos campos de concentração, os mais fracos e debilitados eram escolhidos para a morte. A diferença é que alguns, aqui, hoje, vivem em "campos de concentração a céu aberto e sem cercas", em uma pretensa democracia. Mas, claro, como não trabalham, não há libertação para eles...