sexta-feira, 4 de abril de 2008

Ainda sobre o constrangimento

Recebi hoje, por e-mail, um texto escrito pela socióloga e advogada Ana Paula Motta Costa, ex-presidente da Fase e da Fasc, participante do Fórum RBS que aconteceu na última terça-feira.
Eis o que ela diz:
"Constrangimento...
No último dia 2 de abril, participei junto com outros oito convidados de debate promovido pela Rede RBS sobre o tema do “constrangimento gerado pelos moradores de rua aos cidadãos”. De lá para cá, venho pensado sobre a experiência e os fatos ocorridos no debate, o que me faz trazer algumas questões para a reflexão. Parto do seguinte questionamento: o que, em toda a temática, deve causar constrangimento?
Penso que o constrangimento real e concreto é o fato de vivermos em uma sociedade em que muitas pessoas são submetidas a circunstâncias de vida sem a mínima dignidade, a tal ponto de ir para as ruas das cidades mendigarem ou buscar a sobrevivência diária, da forma em que esteja a seu alcance.
Constrangimento é ouvir o Subcomandante da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, Cel. Mendes, dizer que recolhe pessoas, como se fossem lixo, e as leva sem o menor critério, visto que “são um saco de gatos”, para um quartel da Brigada Militar, mantendo-as privadas de liberdade por algumas horas. Trata-se, portanto, de uma autoridade pública de nosso Estado, que prende pessoas, sem estarem em flagrante delito e sem ordem judicial, pelo simples fato de estarem nas ruas. Como se criminalizar a pobreza estivesse no âmbito da sua absoluta discricionariedade, ou no espaço de poder que lhe está delegado institucionalmente.
Constrangedor é ouvir o juiz de direito Felipe Keunecke de Oliveira, responsável por uma Vara Criminal da Capital, dizendo que a solução para a criminalidade, ou para a pobreza, pois não necessariamente se estivesse tratando de crimes, é a construção de presídios. Visto que o “problema da sua própria atividade jurisdicional” estaria no constrangimento de ter que prender e não ter onde, ou ter que escolher entre autores de crimes de ameaça e latrocidas...
Constrangimento é observar a pressão a que foi submetida a única convidada do debate que trabalha junto à população de rua, Iara Ramos, como se ela, ou organização não-governamental que ela representa, é que estivessem equivocadas ao tratar as pessoas em situação de rua como “seres humanos”.
Parece que estamos vivendo um momento no Estado bastante constrangedor... As instituições e autoridades são capazes de ir aos meios de comunicação expressando-se como se não estivéssemos em um estado democrático de direito, onde existe uma Constituição que há quase vinte anos prevê diretos individuais, como o direito de ir e vir, para “todos os cidadãos”, além de diretos sociais, os quais devem ser tratados com força normativa e institucionalizante de uma ordem social capaz de garantir a dignidade humana.
Parece que temos muito a caminhar no sentido do desvelamento do pré-conceito que fecha os olhos das pessoas frente à humanidade de outras pessoas. A indiferença faz com que se sinta constrangimento frente ao invisível, que só ganha visibilidade quando faz aflorar as contradições sociais, que se prefere estejam escondidas.
Conforme refere Zigmunt Bauman, a sujeira só é sujeira dependendo do lugar em que ela se encontra. E exemplifica: o sapato pode estar limpo, se estiver no pé ou no chão. Se estiver em cima da mesa, por mais limpo que esteja, está fora de lugar, e representa a sujeira.
As pessoas que estão em situação de rua só “são consideradas lixo”, por quem as entende assim, e na medida em que estão “fora de lugar”, ou seja, se estiverem invisíveis à sociedade formal, presas ou encarceradas nas periferias, talvez não causem constrangimento..."

(Ana Paula Motta Costa)

E ainda há o ótimo artigo do Moysés, publicado na ZH de hoje (e postado no blog dele). Pelo menos deram um pequeno espaço para as vozes discordantes.

4 comentários:

Vica disse...

Muito bom esse texto.

natalia. disse...

O texto dela é ótimo e diz muito do que eu penso. Mas fica o questionamento: por que ela não se posicionou desta maneira durante o debate?
É fato que teve menos tempo de fala, mas eu jamais conseguiria participar de um debate desse tipo sem me indignar na hora.

Anônimo disse...

Eu acho excelente que, ao menos, e ao contrario das minhas perspectivas pessimistas iniciais, tem havido um bom numero de artigos, textos e ensaios na "grande midia" manifestando alguma indignacao com essa bobajada mal-dirigida pela grande REDE e pelos "especialistas" de araque por ela agregados.

natalia. disse...

O que falta ainda é levar ao conhecimento dos moradores de rua essa bobajada que foi dita sobre eles, para que eles mesmo se posicionem. Eu acho a maneira mais legítima de atacar as matérias/programas preconceituosos que foram veiculados pela RBS e também os "especialistas" sem nenhuma especialização em viver na rua.